sábado, 6 de dezembro de 2014

A fada verde - e não, não se trata de absinto

Me deu vontade de contar um conto. De vez em quando me dá uma dessas. Então, vamos lá...

A Fada Verde

Foi um sábado a tarde. Estava ajudando minha mãe no jardim, quando meu pai veio e disse "reunião hoje". Eu suspirei nervosa. Minha mãe piscou para mim; só ela sabia que eu estava apaixonada por William, que era da turma de E.S. II, do lado da minha sala de Estudos Sacros I. Eu queria vê-lo muito neste fim de semana - tinha conseguido finalmente, juntando todo meu dinheiro de limpar jardim dos outros, comprar o vestido dos meus sonhos. Ele ia me ver naquele vestido. Era verde escuro com renda negra, e esvoaçava ao andar, comprimento no joelho. Formal. E despojado ao mesmo tempo. Estava grande, mas minha mãe ajustou e ficou perfeito. Me sentia adulta nele, até mesmo sexy.

Quando chegamos, sentia-me confiante. Andei para a sala dos jovens com meus amigos, enquanto via minha mãe conduzir meu irmão menor para a brinquedoteca. Meu pai sorria bonachão para os colegas. Até o ouvi falar "vamos discutir o sexo dos anjos hoje?" e todos riram a beça. William se aproximou e senti as mãos molharem. Ele me beijou no rosto, fez o mesmo nas minhas amigas, chamou Leandro de mané, e sussurrou no meu ouvido:

- Você parece uma fada neste vestido. Está linda. Acho que você me enfeitiçou. Fui encantado pela fada verde - e piscou para mim imitando o voo de uma fada afetada.
Eu ria alto.

Mas quando os pais saíram da reunião, não havia risos. Havia desespero. Minha mãe orava baixinho, meu pai roía o nó do polegar. Ele só fez isso uma vez, quando Vicente nasceu. E fazia 8 anos! Os outros pais também estavam nervosos. Mulheres chorando. Uma delas gritava histericamente. Outro tentava ser acalmado a força.

Meu pai dirigia. Apertava tanto o volante que ouvi o couro ranger. Minha mãe falava coisas desconexas. Ouvia dizer "quem devemos avisar?". Meu pai olhou furioso para ela e gritou "NINGUÉM!!!!". Vicente começou a chorar.

Chegamos em um mercado enorme. Minha mãe pegou um carrinho, meu pai outro. Ele disse que eu deveria ir com ele. Então me dá a ordem mais estranha.
- Vai e pegue todo o sabão em barra que vc encontrar. O mais barato.
- Quantos?
- Todos. Traga todos.

Obedeci, mas não pude deixar escapar um som de espanto. Estávamos regulando custos, desde que mamãe ficou desempregada. E agora aquilo?
Eu trouxe sabão. Sementes. Trouxe arroz desidratado, pacotes e mais pacotes. Enlatados. Carne defumada. Vasos? Adubo? Fiquei zangada - ia sujar meu vestido! Meu pai ordenava:
- Traga e não faz pergunta.

Enchemos 8 carrinhos e estávamos exaustos. Eu estava com tanta vergonha! Por que aquilo?
Minha mãe disse a meu pai que nos deixasse pegar o que quiséssemos. Qualquer coisa. Não ia fazer diferença. Meu irmão correu pegar brinquedos. Eu congelei no chão.
- Vai filha. Pegue o que quiser.
- Pai, esta compra vai dar uns $1.000,00 para mais! 
- Você sempre quis aquele batom, e comprar aquele bolo de nozes né? Vai, pega.

O batom nem me fazia apreço, mas o bolo sim. Era um bolo de nozes, cheio de outras coisas, que vinha em uma lata linda, negra com desenhos dourados. Minha vó tinha uma igual. Custava uns $100, e sempre ouvi meu pai dizer "só se te der de Natal!". Mas eu preferia outras coisas. Quem ganha bolo no Natal?

Peguei a lata hesitante. Ela era leve e delicada, como uma jóia.

A compra total deu $4.825,00. Nunca vou esquecer este número. Não lembro quantos carrrinhos. Nunca vou esquecer meu pai pagando em cartão Visa, o gerente vindo trazer caixas e conferindo o que estávamos fazendo, espantado. As pessoas cochichando. Meu pai fez duas viagens para casa. Ficamos eu e minha mãe no parquinho, se balançando, minha mãe mais criança que meu irmão, e eu com mais vergonha ainda.

Quando vi, estávamos em casa fazendo malas.
"Leve só jeans, camiseta e moletons, filha. E roupa íntima. Não, não leve o secador."
"Posso levar meu vestido novo?"
Minha mãe me fita com olhos tristes. Ela me abraça forte. Eu sinto suas lágrimas quentes cair na minha testa. Ela me diz "guarde dentro de sua lata. Ele vai ficar limpo, não vai estragar". Tirei o vestido, minha mãe o lavou com todo o esmero, e depois de seco o guardou na lata negra com desenhos dourados, com um lindo sachê de lavanda.
Lavanda. Não gosto do cheiro de lavanda.

Aconteceu 3 dias depois que chegamos a chácara da igreja, onde todo ano eu ia para o retiro. Quando cheguei, vi William em pé, olhando o nada. Rolavam cristais de seus olhos, iguais as minhas lágrimas.
Enquanto tínhamos energia, víamos o mundo se despedaçar. Desespero, violência. Barbáries. A jornalista na TV com mais olheiras que nós. Chorando ao vivo, perguntando "O que será de nós?".
O pastor dizendo que devíamos deixar a TV de lado e se concentrar nas tarefas. Que eram muitas. Logo não podíamos mais ver nada. Energia só dos painéis solares. Água só do poço artesiano.
Cavei dias seguidos, do lado de Leila, minha amiga. Do lado dela, mais amigos meus cavavam. Abrimos um círculo ao redor da chácara, que nenhum carro poderia passar, ninguém poderia passar sem cair lá dentro. Enchemos de espinhos. Coroas de cristo.
Coroas de cristo. Minha mãe dizia que o "leite" que sai delas é venenoso.
Cavei mais depois. Mas eram covas. Lembro de o pastor bradar "vamos persistir Naquele que nos fortalece!". Eu cheguei a pensar que o Aquele tinha esquecido de nós.

Aprendi a atirar. A plantar. A cuidar de feridos. 
De noite, nos ensinavam o que sabiam. Viam que tinha talento para trigonometria; me direcionaram para aprender a construir coisas.
Construímos barricadas. De madrugada, íamos escondidos buscar o que precisávamos na cidade. Alguns não voltavam. 
William era o melhor para atirar. Ele tinha uma barba engraçada. Ele um dia conseguiu uma lata de cerveja, me convidou para beber com ele. Estava quente, cerveja quente! Nos beijamos.
Leandro fugiu. Nunca mais voltou.
Os anos passaram. Um dia veio um homem. Nos disse "acabou! eu tenho provas aqui! tudo acabou! Amigos, saiam daí". Gritava de dentro do carro, sem armas, sem desespero.
Choramos. Nos abraçamos.

Faz um ano que saímos da chácara. Desde aquela tarde, já fazem 4 anos. 
O vento balança meu vestido verde. Verde escuro, renda negra. Eu cresci, mas emagreci tanto, que consegui ainda entrar nele. 

Ele merece isso. Merece este vestido. 
Ouço meu irmão falar alguma coisa. Ele me abraça. Eu deixo as lágrimas falarem por mim.
Ele se afasta. Olho as flores, o Sol começa a se levantar.
Abro a lata. Negra com desenhos dourados. Incrível, estava quase intacta dentro de nossa casa destruída. Meu pai a abriu e disse "Olha! Estamos ricos! Bolo de nozes! Epa, é um vestido!". Eu ri. Não tínhamos tempo para piadas, tínhamos que voltar para a chácara. Ele sabia que era perigoso. Mas ainda sim não perdeu a piada.

De dentro dela tiro as cinzas. Tentando buscar remédios, numa tarde fria, quando uma mulher deu a luz e teve complicações. Morto. Uma vida por outra.
Trouxeram-no ainda lúcido. Ele me sorriu.
- Minha fada verde.
Foi tudo que me disse. E foi para onde não posso ir ainda.
Senti a mão D´Aquele o levando ao Céu. 
Tiro as cinzas devagar. Espalho no ar, elas brilham ao Sol como pó mágico de fadas.
O vento sopra, levando William para longe. Para o tudo.
- Até breve, meu amor. Um dia voarei até você. Prometo.
O vento uiva, o Sol brilha. 
E lembro daquela tarde inocente. Em que ele foi meu sonho dourado, e eu fui sua fada verde.

*por favor, não esqueça dos meus créditos se for reproduzir o texto*


Carpe diem, carpe noctem, finis est initium.

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